Um beco sem a lama não é beco
Um beco sem a alma não tem lama
Um beco que não assombra não aponta
Um beco que não aponta não faz sombra
Um beco que não assombra não tem vida
Um beco que não tem vida não é beco
Um beco sem a vida não projeta
Um beco sem projeto não se cria
Um beco que não cria não produz
Um beco não produzindo gera o nada
Um beco sendo nada não tem arte
Um beco sem a arte não renasce
Um beco com arte recria a vida
Um beco recriando faz a arte
Um beco fazendo arte se completa
Elder Heronildes
Um beco sem a alma não tem lama
Um beco que não assombra não aponta
Um beco que não aponta não faz sombra
Um beco que não assombra não tem vida
Um beco que não tem vida não é beco
Um beco sem a vida não projeta
Um beco sem projeto não se cria
Um beco que não cria não produz
Um beco não produzindo gera o nada
Um beco sendo nada não tem arte
Um beco sem a arte não renasce
Um beco com arte recria a vida
Um beco recriando faz a arte
Um beco fazendo arte se completa
Elder Heronildes
Nas primeiras décadas do século vinte, os iniciados modernistas, capitaneados por Oswald de Andrade, tinham um reduto de encontros etílicos e culturais na Rua Líbero Badaró, no centro da capital paulista, o qual denominava a “garçonniere”, onde aconteceram os registros das primeiras discussões modernistas que antecederam a Semana de 22. Nessa confraria, os modernistas escreveram um diário coletivo, culminando no livro “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”, com duzentas páginas, expondo a intimidade daquelas pessoas com cartas, recados, recortes, colagens, cores, tintas, desenhos, poesias, prosa e um pouco do pensamento pré-modernista do grupo, que mais tarde explodiria com a Semana de Arte Moderna.
Este “diário da garçoniere” é um embrião do livro “Miramar e Serafim”, cujo tema Oswald de Andrade buscou registrar o espírito modernista num mundo em transformação, cabendo esperanças para uma nova forma de fazer poesia. “Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo, que, fraternalmente se misturam para formar, no ambiente colorido e musical desse retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida”, escreveu Oswald sobre aqueles encontros modernistas.
Resguardando as devidas proporções, o Beco da Lama, no centro da capital potiguar, tem sido a veia nevrálgica de vanguarda cultural do Estado. Para o leitor ter uma idéia da importância da confraria bequiana, quando em São Paulo, os modernistas proclamavam o novo estilo literário vigente com o “Manifesto Antropófago”, o poeta Jorge Fernandes fazia versos modernos como “O banho da Cabloca”, “Tetéu” e outros, no Beco da Lama. Vale ressaltar que o poeta Jorge Fernandes morava na Rua vigário Bartolomeu, rua paralela ao Beco, portanto, um freqüentador assíduo da boêmia natalense. Alguns professores da UFRN costumam dizer que Jorge Fernandes fez poesia modernista na própria "fase heróica" e, na época que Jorge Fernandes lançou seu “Livro de Poemas”, a idéia de modernismo ainda era muito frágil no Brasil, sobretudo, no Rio Grande do Norte. De acordo com os estudiosos da literatura local, Jorge Fernandes foi recomendado por Manoel Bandeira, tardiamente, quando soube da poesia jorgiana, escrevendo em carta à Veríssimo de Melo: “Precisamos urgentemente da poesia do poeta Jorge Fernandes. Urgentemente!” O poeta Jorge Fernandes teve seus textos veiculados nas principais revistas modernistas paulistas, no clamor do modernismo.
Quando Oswald de Andrade se formou em Direito pela Universidade de São Francisco, seu pai, percebendo o talento jornalístico do filho, patrocinou a abertura do periódico “O Pirralho” para que Oswald pudesse escrever e expressar seu pensamento. Na mesma época em Natal, o pai de Câmara Cascudo montou o jornal “A República” logo depois que o Príncipe do Tirol se formou em Direito, pela Universidade de Recife. Cascudo era freqüentador costumeiro do Beco da Lama, era sempre visto entre amigos pelas ruelas do Beco ao cair da tarde, buscando inspiração para mais uma “Acta Diurna” que seria veiculada nas páginas d’A República no dia seguinte.
Segundo a historiografia da literatura local, Luís da Câmara Cascudo é considerado "a ponte" entre Jorge Fernandes e Mário de Andrade. Cascudo é quem introduziu as idéias sobre modernismo no Estado, afirmando na sua obra que Natal havia nascido no século vinte, tendo "dormido literalmente" nos séculos anteriores. Para o escritor e crítico literário, Moacy Cirne – morando no Rio de Janeiro, é um freqüentador esporádico do Beco –, só há dois momentos importantes na Literatura Potiguar: o primeiro com o modernismo de Jorge Fernandes em 1927 e o outro com o advento do “poema processo”, em 1967.
Nas paredes da garçonniere oswaldiana havia quadros de Di Cavalcanti, Tarcila do Amaral, Anita Malfatti, entre outros artistas modernistas. Entre os freqüentadores daquela confraria paulista, havia as musas que freqüentavam as tertúlias literárias e uma delas era a normalista Maria de Lourdes, que os modernistas chamavam de Deisi (ou Miss Ciclone), símbolo da mulher moderna, independente, jovem, bonita e talentosa. Ao longo do tempo, o Beco da Lama tem sido palco para as mais diferentes beldades que vem inspirando poetas, prosadores e recheando os textos de alguns contadores de sonhos. Gardênia Lúcia foi durante muitos carnavais a sereia dos mares metafóricos dos poetas bequianos. Há relatos que um determinado Imperador apimentado do Beco da Lama foi vítima dos encantos de Gardênia, tendo ficado desaparecido por muitas luas.
Nas artes plásticas, a primeira exposição norte-riograndense, assumidamente modernista, foi realizada pelo artista plástico Newton Navarro, em 1948, numa sorveteria no centro da cidade, adjacências do Beco da Lama. Na contemporaneidade becodalamense, quadro de artista plásticos potiguares, do quilate talentoso de Valderedo Nunes, Assis Marinho, Franklin Serrão, Marcelus Bob, Léo Sodré, Gilson Nascimento, Fábio Eduardo, Marcelo Fernandes e outros artistas, retratando, nas paredes do bar de Nazaré, o cotidiano do Grande Ponto, expressando as marcas da vanguarda cultural dos freqüentadores do Beco da Lama.
Enquanto os fragmentos literários, produzidos durante o tempo da garçonniere pelos modernistas, viraram um diário coletivo, anotações poéticas que se transformaram num livro, registrando a inquietação daqueles intelectuais, a Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências – Samba – mantém uma lista de discussão na internet, aonde recortes e colagens antropofágicas vão registrando a ebulição cultural vivida nesse recanto da Cidade Alta. O pensamento dos freqüentadores da “garçonniere becodalamense” está estampado nas páginas de um blog na internet, “Alma do Beco”, cujas idéias são as mais profundas tentativas de revisão crítica e de reconstrução da cultura potiguar, que demandou a pesquisa e a abordagem poética de fontes do passado.
A Alma do Beco é a junção dos recortes literários, produzidos através dos sonetos de Antoniel Campos, das glosas fesceninas de Laélio Ferreira, dos pés-quebrados de Chagas Lourenço, dos poemas de Eduardo Alexandre, Luiz Carlos Guimarães, Márcia Maia (poeta pernambucana)
Neste mundo virtual, também há espaço para as crônicas, ensaios, pesquisas, história do Estado, fotos de quase todos os confrades e confreiras dessa garçonnieri potiguar. Uma das mais interessantes descrições sobre o Beco da Lama é a epígrafe do blog na internet: “Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo”. Com o lançamento do jornal impresso “O Beco”, os confrades ganham uma voz para registrar os fartos banquetes literários das almas virtuais deste mundo bequiano. Um instrumento capaz de abrir o verbo e gritar a essência da vanguarda do Beco da Lama: Poti or not Poti, that’s Potengi!
Alexandro Gurgel
gostaria de saber quando esse poema (Decepada Rua da Palha)foi escrito e se ele consta em alguma publicação impressa ou antologia...
ResponderExcluirO poema foi escrito, Douglas,no mesmo dia da postagem. Está inédito em publicações.
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