quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cascudo e Car(na)téis


Plínio Sanderson


Verossímil ao tempo, a terra não pára. A proximidade com o solstício de verão austral, traz a estação do desejo aos trópicos dos pecados tórridos. Um fim de ano marcado por dois eventos emblemáticos, mas díspares: a I Mostra de Cultura Popular, promovida esplendidamente pela Secretaria Estadual de Educação, e, no extremo antagônico, o Carnatal, produzido pela Destaque.

A Mostra revelou o elefante e suas entranhas mais sagradas: o sincretismo cultural. A idéia da profª. Isaura Rosado de pragmatizar a educação via cultura é antídoto infalível contra a homogeneização global da aldeia. A invenção e a auto-estima popular se reencontram em suas vestes mais íntimas: Bois Calembas, Fandangos, Pastorinhas, Caboclinhos, Cheganças, Lapinhas, Congos (de Saiotes ou Calçolas), Ararunas, Maneiros-paus, etc. Tatuando nos corpos (docentes e discentes) práticas quase extintas ou semi-desaparecidas do imaginário coletivo. Cascudo redimido acenderá charutos, regozijando-se ao deleite das peripécias da massa em evoluções.


O Carnatal, maior evento do estado, encontrou porto seguro na nossa cidade, sempre travestida de modernidade, seduzida pelo “outro”, fadada à aculturação. A Baianidade, azeitada pelo caldeamento de todos os santos e raças, lança ritmos e concomitantemente consolida mercado, numa estratégia perfeita - sem crise, nem baixa estação.


Os defensores proferem argumentos hiperbólicos (“é o maior fora de época do...”) ou naturalizam (“é gerador de renda e emprego”).


De um lado, o Carnatal, do outro, a fome geral catando latinhas.


Papangus modernosos, fantasiados de abadébeis e a corriola, pipocando além das fronteiras marginalizantes das cordas. Aqui, essa indústria transforma e transtorna a cidade, que passa por toda uma reengenharia do trânsito, da iluminação, na segurança/policiamento e na saúde, os serviços públicos tornam-se otimizados, com aparatos eficientes, enquanto que, no cotidiano real...

Car(na)téis. Na horda da política (estadual e municipal) orbitam vereadores, deputados, secretários interagindo numa clara intervenção estatal no processo de acumulaçãode riqueza, introduzindo novos elementos para dinamizar a economia, sob a égide do turismo e do folclore artificial. A configuração do poder local, em comunhão com os principais grupos econômicos, sincronizam interesses ávidos, que convergem para a sustentação da animosidade carnabestial.

O escritor Giba Felisberto Vasconcelos, brincava no Bar Mintchura em meados dos 80, apelando para Maiakovski, "se existe um homem feliz, é lá no Brasil, afirmava convicto, e só pode ser o Cascudo". Giba, colunista da revista “Caros Amigos”, cita e recita o “Príncipe do Tirol” em todos os seus artigos. Recentemente, chama o Luís da Câmara de “o filósofo do povo brasileiro”. E critica a “professorança universitária”, que prefere erigir pensadores estrangeiros como Lacan, Fucô, Weber, e não leva a sério o santo (de casa) fazedor de milagres. “O pior de tudo que nem mesmo em Natal, aonde o mestre veio ao mundo, ele não é assimilado na Universidade e em outras instituições, ou seja, a sua obra ainda não se converteu em força material. Para desgraça e infortúnio do povo potiguar”.


O advento da Mostra Popular deve simbolizar a pedra fundamental no resgate de nossa memória. Quem sabe, inaugurar uma cruzada pela inserção da disciplina “Literatura Norte-riograndense” na grade curricular – em estados vizinhos, já se cobra em concursos o conhecimento em suas literaturas peculiares. Não é apenas reserva de mercado, mas uma forma eficaz de cultuar personagens, imortalizando-os através de suas obras. Uma leitura ou grafia, atribuindo sentido aos espaços imagéticos do RN, revisitando desde a concretude processual (o “suspenso” de Jorge Fernandes; os visuais e semióticos de Falves; A. de Araújo, Jota Medeiros), até a identidade com o chão profundo no nativismo de Itajubá, Auta, Manuel Dantas, Palmyra, Otoniel...

Vivalha a lamaravilha. A SAMBA (Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências), em movimento de resistência ao estorvo micareta, realiza o II Carnabeco, homenageando foliões etéreos e eternos: Maestro Mainha, Lelo Melodia, Blackout, Boscopeta.


Axé ou ôxente? Um paralelo de parabélum na língua - mais forte são os saberes do povo!


Publicado Jornal de Hoje - 12/03/05


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