quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O nosso primeiro fotógrafo

Era como um ornato indispensável às festas. Antecipando a sua chegada, a indefectível fotografia, tão regular, tão natural, tão sua e inerente ao seu hábito que, julgamos possível, vê-lo ressurgir vivo e são, na tarde do seu enterramento, para bater mais um chapa fotográfica.

DR. MANOEL DANTAS
Luís da Câmara Cascudo. A Imprensa, 18 de junho de 1924.

A homenagem da Maçonaria ao seu benemérito associado – A sessão fúnebre da Loja “ 21de março”.

A oração de Luís da Câmara Cascudo

Sr. Dr. GOVERNADOR DO ESTADO
IRMÃO DELEGADO
MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES
PREZADOS IRMÃOS

A maçonaria norte-rio-grandense homenageia pela voz deste seu mau escolhido
orador um daqueles vencedores da morte que no verso camoniano se vão da lei da
morte libertando...

Tão alto é este termo do poeta que séculos antes S. Paulo interrogava se a morte
tinha poderio sobre certas estruturas mentais.

E esta a única, a verdadeira consagração. Sai de todos nós, do povo. O Estado
reflete somente o clamor ambiente. A lembrança mais viva é aquela que circula no
ritmo do sangue sem estátua, sem mármore, sem bronze.

Melhor expressão para a saudade não existe senão em nossa curiosidade de
procurar o morto nos lugares por ele frequentado. E às vezes sojigamos o ímpeto de
perguntar se ele apareceu fazendo o jornal ou semeando anedotas.

Manoel Dantas era a síntese do povo. Sertanejo, praciano, geógrafo e matuto,
advogado e um vivo anedotário, jornalista mestre pela capacidade de trabalho, fingia
receber lições de qualquer um.

Sairia do Sertão. Não este Sertão cinematografado em “posse” de vigiliatura
verânica. Não este Sertão de usos citadinos, mas o sertão autêntico, o sertão de pedra.

O meio físico atuando sobre sua formação anímica asselou-a com os traços de
sua face eterna. É um ambiente dantesco. As serras se erguem despertas e mudas como se o combate geológico as fraturasse subterraneamente. A vista que [ilegível] encontra além do tênue vestido dos capins verdes, da ondulação ciciante do panasco, aquela outra vegetação de pedra, abrupta, angulosa, irrompendo do seio da terra como exclamações de pavor a epopéia titânica das secas.

Deste ambiente ressurge o Hércules. – Quasimodo euclidiano. Trouxe a síntese
da força latente, da resistência espiritual. Consegue reunir a extrema sensibilidade e
fereza extrema. E quando a grande alma sertaneja se expressa num tipo de sua criação e legitimidade – é o cantador, aedo da viola rústica enfestonada de fitas ou vaqueiro, campeador da marroeiros ariscos no mundo intrincado das carrascais e xiquexiques.

A outra face desta terra é pelo inverno. À primeira [ilegível] de chuva o solo
reverdece e há um milagre sereno, como diria o Padre Vieira, confusão verde. A água
desce cortando espelho movente e claro, num reflexo de prata pelo tapete das várzeas.

Neste hiato ao ciclo climatério o sertanejo retempera o aço de sua vitalidade para
o próximo combate. E a sua vida não é que um rápido resfolegar no intervalo das
pelejas.

Este é o meio, este é o cadinho onde se forma a sub-raça dos homens de bronze,
guerreiros dos elementos, semeando a braço forte a civilização e a idéia do mundo no
inferno verde da Amazônia.

De tal seio surgiu Manoel Dantas. Fiel à terra imensa e rude foi ente nós a
grande voz do sertão.

Este porto de incidência entre o sertão e o litoral merece realce. Durante três
dezenas de anos Manoel Dantas conservou-se no vértice deste triângulo. Dos lados
desmesuravam a orla dos litorais com o rosário de cidades e do outro o infinito das
pradarias sertanejas.

O papel social o político devia ser custoso a outro. A ele era a própria atmosfera.
Desta forma a onda sonora encontrava-o para transmiti-la variando, prudente e sereno, o curso e a impetuosidade.

Foi seu magistério, conselheiro privado do Sertão. Conselheiro sem palavras,
mas em gestos, na eloquência das atitudes. Nele se consubstanciava o ímpeto da
vaqueiro e a prudência calculada do cantador.

Através de longa estada na “praça” Manoel Dantas manteve-se sertanejo. Era-o
na linguagem desataviada e franca, na gesticulação natural e pouco cerimoniosa, no
certo de contar anedotas.

Todos nós nos acostumamos à sua figura. Era como um ornato indispensável às
festas. Antecipando a sua chegada, a indefectível fotografia, tão regular, tão natural, tão sua e inerente ao seu hábito que, julgamos possível, vê-lo ressurgir vivo e são, na tarde do seu enterramento, para bater mais um chapa fotográfica.

E perguntávamos como uma criatura viajada e lida, conhecendo sumidades,
tendo sua terra n`alma e na inteligência, pudesse conservar a simplicidade ancestral dos seus maiores.

Não há um de nos que não recorde a sua voz tantas vezes ecoada no brilho das
festas maçônicas. Sob estas abóbadas ouvimo-la soar saudando a bandeira, estímulo,
alegria, mocidade poderosa naqueles dois olhos de eterno rapaz engraçado...
Recordamos essa vida feita de calma e bondade. Aquela voz de mestre sem
palmatória, de político sem vingança, de douto sem orgulho. Lembramos o tique verbal dos tácitos entremeados na conversação, a deselegância de andar, o piso forte, pausado, regular; o conselho meio riso meio seriedade que se orlava nos lábios finos num sorriso de irmão mais velho.

Esta síntese de apuro intelectual e desleixo e esquecimento pelo “modernismo”
era uma fidelidade ao Sertão.

Sempre o senti vestido mentalmente de vaqueiro. Ele nada mais foi de que um
vaqueiro de idéias.

Nunca pode fazer um estudo regular, metódico, seguro de qualquer cousa.
Manoel Dantas bibliófilo e possuidor de cinco mil volumes lia às carreiras, no bonde,
no trem, entre a “prosa” no jornal... Menos por si do que pelos seus encargos conservou-se um gazeteiro de idéias. Feriava-as sempre.

Entretanto o jornal seria feito sempre por si todas as vezes que desejava. Ia do
artigo de fundo ao suelto leve, da crítica à notícia, rápido oportuno, incisivo.

Apreendia as idéias de relance, num vôo d’imaginação, numa presciência.

Quando todos nós esperamos que a idéia venha carreada pela leitura, Manoel
Dantas buscava-a num lance arrojado, num minuto de afoiteza que bem condizia com
ele, neto de vaqueiro, os gladiadores do sertão hirsuto e bravio.

Sob aquela aparência de descanso, de tranqüilidade, de andar igual pelo mesmo
caminho, se escondia imaginação altíssima, romantismo, esperança, todas as virtudes
que pensamos existir nos patriotas verbais.

Entre os de seu tempo nenhum, por mais idealista, concebeu uma cidade ideal
substituindo esta em que vivemos. Viu-a Manoel Dantas, Ali-Babá cheio de pausa e
lento entusiasmo. E foi quem reputávamos o menos idealista dos patrícios donde partiu o gesto mágico, a palavra de encanto para fazer surgir em Natal fantástica, iluminada a milhões de lâmpadas, cidade de ouro, imensa, toda clara, mármore branco de Pentalico, e em volta, o Potengy fazia a lenta ronda meiga com seu dorso d`esmeralda.

Natal daqui a cincoenta anos é uma página de fé. Nele, se pretendêssemos tirar
o melhor de sua esperança, como Pero Vaz de Caminha para a terra moça do Brasil –
dar-se-há nelle tudo.

Manoel Dantas geógrafo era-o na acepção real e ladina do vocábulo. Conhecia a
terra a ele. O esboço coreográfico sobre o Rio Grande do Norte completa uma fase em meu espírito. Em 1918, firmando o que de alto e nobre queria Manoel Dantas ao nosso Estado escrevia-me.

“Os que estudam e amam a nossa terra hão de fazer conhecida com a segurança
que possuímos dela não recear confrontos”.

Outro dirá melhor do político. Só desejo e desta gloria só fico contente dizer
daqui, nesta festa de saudade, que Manoel Dantas se foi político não era da política
brasileira.

Morreu sem um inimigo.

Isso não quer dizer nada de bem. Um homem que sai da linha comum dos
homens, sobe um pouco, o Sol deve iluminá-lo com mais brilho por que ele fica mais
próximo do sol. O mau olhar dos outros deve ser obrigatório. Homem sem inimigos,
sem contestações, sem divergência é uma entidade moderna, sem equivalente na escola zoológica. E Dante assim entendia. Lá está no canto 3 uma multidão que chora obrigada a viver sob um ar sem estrelas e alívio. A esta gente pergunta o Florentino.

Ó mestre que ouço agora?
Quem são esses que a dor está prostrando?
Desse misero modo-tornou-chora
Quem viveu sem jamais ter merecido
Num louvor nem censura infamadora

Manoel Dantas teve inimigos e não poucos. Havia para si a superioridade de
sabê-los vencer sem zangas. Por mais que o adversário multiplicasse os golpes, tinha de si um contendor sereno. E de mãos crispadas caía, naturalmente, o florete ante a
invulnerabilidade tranqüila do inimigo.

No segredo desta força reside a base de sua Vitória. O primeiro que Manoel
Dantas venceu foi ele mesmo. Foi sempre o primeiro na estacada, na liça, na hora
vermelha da luta. Depois silenciava. Estava esperando que chegasse o outro momento de ser útil.

Abnegação! Eis o lema deste querido que a Morte ainda julga ter pedido levar de nosso pensamento.

Se uma criatura falível e feita de humos da terra pudesse viver na casa cristal,
essa seria Manoel Dantas. Nós sabíamos os seus trabalhos, hábitos, o encargo de suas horas, os seus minutos de lazer e onde empregava o dia trabalhando.

Podemos indicar, dada a hora, onde ele seria encontrado. Vencedor de si mesmo
deu-nos ainda, a todos nós que amamos a inteligência, a floração magnífica de sues
filhos, armados pela cultura e pelo exemplo para a mais nobre e linda Vitória no mundo.

Completou a vida. Deixou filhos, livros e plantou arvores. Creio mesmo que
fosse ele a mais digna Expressão de vida cultural e honesta, da força de terra que o
formara, erguera e vinha alimentando como exemplo, louvor e prêmio de sua
fecundade.

Faz-se mister lembrar os dois conselhos. O de Bossnet dizendo que a verdade é
devida aos mortos; o de Machado de Assis explicando que dizer bem dos mortos é uma forma de orar por eles.

Se dissemos a verdade elogiamos o nosso ex-venerável. Oração? Seríamos
dignos de orar por ele? Se este nos deu o caminho sereno da conduta, o riso tranquilo no meio da luta, a esperança entre trovões e tempestades de ódio mesquinho e rastejador, se algo merece não é a nossa oblata – é a saudade.

Eu sei o que perdi. Calou-se umas das raras vozes que ainda possuo na minha
defesa quando mordido. Silenciou, para mim e para o Estado, um de seus mais
devotados e leais filhos. Para a Maçonaria finou-se o irmão modelar, seguro, denodado, altivo, cheio de bem e de amor para com os outros.

Para o Sertão, melhor ele sentirá a ausência daquele que o defendia.

A Maçonaria Norte-Rio-Grandense presta a memória altíssima de Manoel Dantas, a cerimônia de sua saudade. Que ela viva sempre diante de nossos olhos, que nos estimule na estrada que pisamos, que nos momentos de abandono e tristeza possa
erguer-se na nossa alma a voz que emudeceu e sempre ouviremos, dizendo, como tantas vezes disse, a palavra de carinho, de confiança e de coragem.

Foto: Manoel Dantas

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