terça-feira, 10 de abril de 2012

O ASSASSINATO DE ANNA MARCELLINA: BALDO, 1845



O ULTIMO ENFORCADO
Henrique Castriciano

A pena de morte deixou de ter execução no Brasil devido,
principalmente, ao sentimentalismo do povo.
Este se agitava unanime, n'um surdo protesto de piedade,
sempre que o imperador negava a commutação da pena ultima, aplicada pelo Jury
ao criminoso que a merecera.
D. Pedro II raras vezes deixava de conceder o relativo
perdão solicitado em casos taes ; e o réo, salvo pela clemência
imperial,contentava-se em apodrecer o resto da vida nas cloacas denominadas,
entre nós, cadeias ou prisões publicas.
No Brasil, a ultima execução deu-se na cidade do Pilar, das
Alagoas, em 28 de Abril de 1876.
O facto causou funda emoção em todo o paiz, principalmente
porque a Princeza Izabel — na auzencia de D. Pedro, que viajava pela Europa — repellira,
não havia muito, em termos decisivos, a suggestão do Ministro da Justiça, que,
debalde, empregara esforços no sentido de obter a morte de um condemnado. Foi
unisono o clamor da imprensa; e ao velho rei, mais uma vez, applicaram o
epitheto de escravocrata, porque se tratava de infeliz captivo,
attribuindo-se-lhe não sei que razões de Estado fundadas no respeito que os
míseros deviam aos senhores, os quaes deixariam de viver no dia em que as leis
deixassem de punir, com o máximo rigor, os maleficios dos escravos.
O horror publico influiu certamente no animo do Imperador,
ja de si inclinado á bondade e á tolerância; e, na parte relativa á pena de
morte, o antigo Código Criminal ficou virtualmente abolido.
No Rio Grande do Norte, o ultimo enforcado chamou-se
Alexandre José Barbosa.
Depois delle, foi condemnado ao mesmo gênero de morte o
paciente Valentim Barbosa, que,em 1847, commettera impressionante e desvairado
crime passional. Estava, porém, muito viva na memória do povo a trágica scena
da execução de Alexandre e o juiz não encontrou quem se prestasse a dar
cumprimento á lei: até os presos recusaram-se obstinadamente...
Valentim teve de ser fusilado.
Mas narremos o crime de Alexandre. Podemos reconstruil-o em
todas as peripécias, baseados no respectivo processo, existente no cartorio do
escrivão Miguel Leandro, e firmados no testemunho de algumas pessoas que
assistiram ao justiçamento do réo. Não é, pois, um romance que se vae ler e sim
uma chronica real, tecida com dados positivos e seguras informações.
A victima de Alexandre, Anna Marcellina Clara, residia n’uma
pequena casa mal segura, á
rua denominada hoje Aquidaban. Essa casa foi substituida por
um edifício assobradado, onde residiu o negociante Thomaz Nunes Monteiro e onde
tem seu atelier o Sr. Alberto Roselli.
Anna Marcellina era natural de Hamburgo.
Forte, de carnação rija, sempre de bom humor, contava cerca
de 50 annos de edade e, pelo amor ao trabalho, pela indifferença com que encarava
tudo que não tinha relação com a sua vida obscura e honesta, gosava da estima
de todos.
Morava só, tendo apenas por companheira uma cadellinha do
reino e, ás vezes, a menina Balbina, sua afilhada, ainda existente nesta
Capital.
Vivia de pequenas vendas de preparados de milho e diziam-n'a
rica, possuidora de occulto e cobiçado thesouro,—fama justificada aos olhos
ingénuos do povo pela assiduidade no mister a que se entregava e pela
alimentação sobria de que fazia uso...
A hamburgueza — assim a chamavam e assim ficou sendo
conhecida através dos annos—tinha o velho habito de frequentar o Baldo, antigo
logradouro publico, onde a plebe natalense, desde tempos remotos, faz nocturnas
abluções e cuja inffuencia nos costumes da mesma plebe merece ser estudada por
um chronista observador.
Ali, a infeliz Anna Clara ia regularmente, ao cahir da
madrugada, lavar a propria roupa; e, de
volta, não raro, dava dois dedos de palestra ao soldado
Alexandre, que morava perto, no logar onde finda hoje a rua dos Tocos. O
soldado, maldoso, gracejava com ella, prestava lhe pequenos favores, fazia- se
serviçal; e a misera, retribuindo os obséquios, emprestava-lhe dinheiro e
objectos de uso commum.
Na madrugada de 13 de Fevereiro de 1845, approximava-se ella
do reservatório, quando ouviu
a voz de Alexandre, que a chamava com urgência.
Anciosa e retardando os passos, perguntou-lhe o que
desejava. O assassino approximou-se, então; e, rápido, sem compromettedoras
delongas, deu-lhe formidável cacetada.
A victima cahiu pesadamente, mas não morta; por isso, o
soldado, mergulhando-lhe o rosto
na areia movediça, poz termo á hedionda tarefa, asphyxiando-a.
Clareava, porém o dia, e o logar não era tão deserto que
permittisse ao scelerado cavar n'aquelle momento uma sepultura. Que fazer,
então? No depoimento do soldado João Francisco de Freitas, accusado pela mulher
do réo de suggestinador do crime, encontra-se a afirmativa de que Alexandre, segundo
confissão feita ao mesmo, conduziu os restos da victima para dentro de casa e
ahi os conservou durante o dia.
O sogro do assassino, o açougueiro de nome Maxiininiano da
Silva, diz que o cadáver se achava
sob um cajueiro quando elle, a convite do réo — que para ali
o conduzira traiçoeiramente — teve de saber do horroroso acontecimento,sendo
obrigado a servir de auxiliar do bandido na tarefa de apagar os vestígios do
crime.
Parece verdadeira a confissão de Alexandre.
Provavelmente elle escondeu n'um dos quartos da casa o corpo
de Anna Clara, e, chegada a noite, o conduziu até a arvore, onde o encontrou
Maximiniano.
Ahi, lembrou-se de occultal-o no Baldo, mas era preciso
fazel-o de modo a não ser descoberto; e, para isso, precisava de alguém que o
ajudasse.
Foi buscar, então, o sogro.
É exacto que o reu morava em companhia da mulher, Josepha
Maria da Conceição; esta, porém, não o denunciaria, a julgar pelos
interrogatórios a que respondeu; votava-lhe o affecto misturado de terror, a
exquisita, mas não pouco vulgar, estima que as mulheres desequilibradas
consagram aos criminosos e aos depravados.
O réo confessou também ao dr. Octaviano Cabral Raposo da
Camará que a hamburgueza, depois de morta, "foi conduzida para o matto e
escondida debaixo de umas folhas."
Receio de comprometter Josepha Maria?
Seja como for, nada tão lugubre como a anciedade desse homem
ás voltas com um cadáver
— cujo peso devia ser excessivo—sem saber, na allucinação do
momento, que destino lhe desse.
A victima foi atirada ao “Baldo” na noite de 13, quando Alexandre,
segundo declaração confidencial feita ao dr. Octaviano, comprou ao negociante
Domingos Henriques uma peça de corda para o fim que adiante se verá.
Tarde, ao pôr da lua, elle procurou Maximiniano e, chegados
ao pé da morta, disse o que iam
fazer.
O desgraçado recusou -se.
— Não posso.
“Ou pega, ou fica aqui mesmo junto com Ella”, resam,
textualmente, os autos, na parte do interrogatório de Maximiniano. Então
começou o hediondo trabalho. Ligaram os pés e as mãos da victima, prendendo-a,
depois, a um pau, á semelhança do processo usado na conducção dos porcos
destinados ao açougue. Em seguida, levaram-na ao "Baldo", não
obstante a fraqueza do companheiro de Alexandre, o qual por diversas vezes
cahiu, na angustia daquella tarefa mortuária.
Ali chegados, o réo ligou a um tronco de carnaúba o cadáver
da extrangeira, que, tres dias após, foi encontrado dentro d'agua “deitado
sobre o ventre e amarrado pelo pescoço, pelo dorso e pelos punhos”, conforme o
laudo da vistoria redigido pelos peritos dr. Thomaz Cardoso de Oliveira e cirurgião
João Thimoteo da Rocha Galvão, em casa do delegado de policia, major Joaquim
Francisco de Vasconcellos.
Alexandre despedia-se do sogro, recommendando-lhe, sob
ameaça, absoluto segredo; e, munnindo-se da cbave que havia encontrado nas
vestes da assassinada, dirigiu-se á casa desta, no intuito de roubar o que lá
encontrasse: tinha sido esse o móvel da atrocidade.
Apenas abriu a porta, embargou-lhe o passo a cadella,
inseparável companheira da victima; o animal, porém, era um desses franzinos
cães de regaço e o monstro, não sem grande custo, conforme disse ao soldado
Freitas, conseguiu dominal-o.
Accendeu uma vela de carnaúba, pregando-a no fundo de uma
cuia ; e, calmamente, depois de
obstruir os claros da janella e da porta, para não ser vista
de fora a luz mortiça da vela, procedeu á minuciosa busca, finda a qual,
sentiu-se, positivamente, logrado. Em vez da cobiçada fortuna, achou somente
pouquíssimos patacões de prata, alguns anneis de pequeno valor e outros
objectos, de ouro, mas de custo módico— objectos estes que, exceptuando as
moedas, foram encontrados occultos no vestido de sua mulher, o que prova a
cumplicidade, pelo menos relativa, d’esta.
O crime só foi verificado a 16, ao meio dia, com o
aparecimento do cadaver, descoberto por diversas crianças que se banhavam na
occasião e que notaram o máo cheiro do reservatorio.
Antes, porém, andavam no ar rumores sinistros,
principalmente porque, na manhã do assassinato, o menino António José, filho do
capitão José António e tio de Joaquim Guilherme de Souza Caldas— que
representou papel saliente na política e na burocracia do Estado — amanhecera
afirmando ter visto, em sonlio, Anna Clara luctando anciosa com alguém que,
após terrível combate, a conseguira asphyxiar. Extraordinário phenomeno telepathico,
inexplicável como tantos outros.
Pela manhã do dia referido, Alexandre encontrou-se com o
soldado Freitas—a quem convidara, havia três mezes, para associar-se ao crime —
e disse-Ihe que ''a hamburgueza tinha ficado de molho no “Baldo”.
Freitas, mais tarde, ao ser denunciado como cúmplice, confessou
isto ; accrescentando que o réo na mesma occasião, dissera estar desapontado
porque quasi nada encontrara, não sabendo mesmo onde ''aquelle diabo tinha
botado o dinheiro”, e julgando provavel que “a justiça achasse muito
mais"...
O chefe de Policia, dr. João Paulo de Miranda, officiou ao
delegado para agir na forma da lei.
Este despachou immediatamente, mandando proceder contra
Alexandre, detido desde o dia 18, e ordenando
fossem inqueridas as testemunhas Balbina (afilhada da
victima) João Manoel de Carvalho, que conecia dous anneis da defunta vendidos
pelo assassino, João Rodrigues, Manoel Martins, o escravo Luiz e o negociante
José Alexandre Seabra de Mello, a quem o criminoso procurara vender um dos
patacões roubados.
Alexandre era natural do Assú e contava 39 annos. Mestiço, de
largo thorax robusto, de cabellos annelados e olhos castanhos, tinha no rosto a
intelligente expressão dos sertanejos do norte, alliada á vivacidade de gestos
e de pronuncia muito communs ao nosso matuto quando se faz soldado, ou quando,
ferido pela necessidade, resolve-se a deixar a terra natal, em procura das
regiões paludosas da Amazonia.
Não gosava de boa reputação: ao tempo em que praticou o
crime estava sendo accusado do furto de uma cabra, "pela qual ia pagar
oito mil reis, "disse elle, manhosamente, queixando-se das injustiças da
sorte.
Nos diversos interrogatórios a que respondeu, revelou sempre
sangue frio e intelligencia prompta, tendo phrases de um vivo colorido plebeu,
verdadeiras filigranas de artista perverso, educado nas chatezas da tarimba.
Analphabeto, absolutamente ignorante, defendeu-se como poude,
alterou datas, phantasiou historias, affastando de si a autoria do crime; mas
as provas se multiplicavam, appareceram diversos objectos que a afilhada da
morta reconheceu serem d'esta, e por ultimo a sua propria mulher, aterrada com
a feição dos acontecimentos, acabou de perdel-o, confessando o bastante para
entregal-o a justiça, sem possível defesa.
No primeiro interrogatorio, em 18 de Fevereiro, disse ter
sabido, como todo o mundo, que a
hamburgueza aparecera no Baldo, e,se a não fora ver, ''era
porque só arrastado veria gente morta e assistiria a embarque de tropa." No segundo, a 19, sendo lhe apresentados dous
anneis que a pequena Balbina, presente, reconheceu serem da madrinha, inventou
immediatamente um conto, affirmando que, tendo comprado um bacamarte, havia
cinco annos, em casa do negociante Joaquim Ignacio Pereira, o trocara depois
com um sujeito desconhecido de Canna-Brava, adquerindo, nesse momento, não só aquelles
anneis, como umas argolas de ouro e outro annel do mesmo metal. Em primeiro de
março, presentes Maximiniano da Silva, seu sogro, sua mulher, Josepha Maria, e
o soldado Freitas—que haviam narrado tudo — garantiu resolutamente serem mentira
as affirmações d'elles, e só depois de concluído e assignado o interrogatório
contou ao dr. Octaviano, "em conferencia reservada" permittida pelo
delegado, alguns pormenores da tragedia.
N'essa oceasião, declarou que Freitas havia muito o convidara
para commetterem aquelle crime, não tendo isto se dado porque Josepha Maria lhe
aconselhara o contrario "mesmo porque o Santo Padre Frei Seraphim estava a
chegar e podia adivinhar."
No dia 7 de Março foram os autos conclusos ao delegado
Joaquim Francisco de Vasconcellos, que pronunciou Alexandre no art. 271 do
antigo código criminal, sendo incursos no mesmo art., grau medio, o soldado
Freitas, Josepha Maria e Maximiniano da Silva.
Em 4 de Abril subiram os autos ao Juiz Municipal, dr. Francisco
Pereira de Britto, que os despachou com vista ao promotor publico.
Houve demora na organização do libello, que só foi apresentado
a 7 de Junho de 1845 pelo promotor interino Bartholomeu da Rocha Fagundes.
O Jury teve logar a 17 do mez seguinte. N'elle funccionaram
Joaquim José Dantas, João Ferreira Nobre, Felippe Varella Santiago, João
Pereira de Azevedo, Francisco Pereira de Britto, João Alvares do Quintal, José
Gomes da Silva, José da Costa Pereira (presidente) Manoel Teixeira da Silva
Forrado, André Matheus da Costa, Manoel Joaquim Açucena e outro jurado cujo
nome as traças devoraram.
Alexandie negou mais uma vez a sua participação no crime.
— Mas — perguntaram-lhe — como foi achado o ouro da
hamburgueza em poder de sua mulher e como esta o houve?
— Estando em minha
casa, num dia que não me lembro, ouvi certo ruido, a uma hora da madrugada.
Sahi fóra, armado de cacete e faca. Vi correr, então, dous vultos, que não pude
reconhecer. Alcançando-os, um d'elles entregou-me todo esse ouro para Josepha
Maria. . .
Defendeu-o, assim como á sua mulher e sogro, o dr. Leocadio
Cabral Raposo da Camara. Freitas teve por advogado o dr. Victor José de Castro
Barroca.
No fim da sessão, o juiz, de accordo com a resposta dos quesitos,
condemnou Alexandre á morte, grau máximo do art. 271 do código penal de então,
appellando ex-officio para a Relação do districto, em Pernambuco, ex-vi do
disposto no art. 449 § 2°. do regulamento n°. 120 de 31 de Janeiro de 1842. Os
outros réus foram absolvidos.
O asssassino, diante d'aquella sentença, que o ia arrancar á
vida, acovardou-se e chorou. Depois, cahiu na mais profunda tristeza, obsecado
pela Idea da morte.
De resto, nada mais proprio para acabrunhar o espirito do
que a cadeia de Natal n'aquelle tempo.
Tenho sob a vista um officio do tenente de artilheria, Francisco
Primo de Souza Aguiar, no qual vem minunciosamente descripto o estado da mesma.
O officio tem a data de 4 de Fevereiro do anno em que o réo
foi justiçado e dá conta do exame mandado proceder pelo presidente d'esta então
Provincia, dr. Casimiro José de Moraes Sarmento.
Como documentação historica, vale a pena rezumil-o. A cadeia
occupava, n'essa época, o andar, ao rez do chão, do sobrado que celebrava as
suas sessões a camara municipal, sito á Rua-Grande, hoje Praça André de
Albuquerque. O prédio era o mesmo de agora, sem as actuaes modificações para
melhor.
Tinha duas fachadas: uma que dava para a Praça e outra para
o lado opposto. Na primeira havia duas janellas e porta ; na outra apenas uma
janella. O pavimento terreo era, por muros interiores, dividido em três, dos
quaes dous serviam de prisão ; no terceiro aquartellavam-se os soldados encarregados
da vigilância dos detentos. O logar destinado ás mulheres media 2m. 20c. de
largura e 9m. 45c. de comprimento, tudo clareado somente por um postigo
gradeado com Om. 60c. de altura e Om. 50c. de largura, por uma fresta aberta na
parede do lado esquerdo e por dous buracos de forma triangular de Om. 20c. de
altura, abertos por cima da porta de entrada. A prisão dos homens ficava no
centro e entrava-se n'ella por um alçapão aberto no soalho, servido por uma
escada movel.
Media de largura 8,10m e 10,45m de comprimento, tendo duas
janellas com grades no lado da Praça e uma no lado opposto, todas com 1 metro
de largura e 1,10m de altura.
Os presos de ambos os sexos nunca se banhavam e cosinhavam
na sala da prisão, sobre o solo coberto de pedras irregulares, de superfície
húmida e lodosa.
Os que não possuíam redes deitavam-se em taboas soltas e as
fezes eram lançadas n'um barril, que ficava todo o dia a um canto.
Relativamente á alimentação, basta lembrar que, existindo 27
presos, a verba designada pela Assembléa Provincial era de 30$000 mensaes:
menos de mil reis diários para manter 27 creaturas humanas...
Eis o antro em que Alexandre teve de aguardar a morte.
Remettido o processo para a Relação de Pernambuco, por appellação
ex-officio do Juiz Britto, o tribunal julgou esta improcedente por accordão de
21 de Março de 1846, sendo devolvido para o respectivo comprimento da lei, em
virtude do despacho do dr. António Ignacio de Azevedo, prezidente da Relação.
Por intermédio do dr. Casimiro de Moraes Sarmento, o Juiz de
Direito de Natal enviou um relatório ao Imperador fazendo o histórico do
processo, acompanhado de uma petição de graça do réo.
Indeferida esta, o presidente recebeu o seguinte aviso :
"3ª secção. Ministério dos Negócios da Justiça, Rio de Janeiro,
21 de Setembro de 1846. Ilmo. e Exm. Sr. Com officio de 18 do mez antecedente e
n°. 87, que V. Exa. me dirigiu, levei á presença de S. M. o Imperador, não só o
relatorio do Juiz de Direito da Comarca do Natal, dessa Provincia acerca do
processo em que foi condemnado Alexandre José Barbosa á pena de morte, por
sentença do Jury da Capital da mesma provincia, em razão de ter assassinado a
Anna Marcellina Clara, como também a petição de graça do dito réo, implorando a
commutação d'aquella pena na de galés perpetuas ou em qualquer outra; e porque,
avistado mencionado relatório, o mesmo Augusto Senhor não julgou o réo digno de
graça do Poder Moderador, ordena que V. Exa. dê as necessárias providencias afim
de que seja executada a referida sentença.
Deus Guarde a V. Exa. José Joaquim Torres Fernandes.
Cumpra-se e archive-se — foi o despacho do presidente.
O Juiz de Direito da Comarca, dr. Cláudio Manoel de Castro,
officiou, então, ao juiz municipal, ordenando-lhe que cumprisse a lei. Este
mandou levantar a forca e marcou o dia 31 de Outubro para a execução.
Nesse dia, ás cinco lioras da manhã, o réo confessou-se e
commungou, sendo-lhe adiministrados os sacramentos pelo padre Joaquim Francisco
de Vasconcellos, que o acompanhou até ao supplicio.
Em seguida, formou-se o préstito. Precedia-o o official de
justiça. António da Silva Vieira, lendo
a sentença, em voz alta e lugubremente declamada; após,
vinha o réo "vestido com o seu vestido ordinário", algemado e com uma
corda ao pescoço.
Acompanhavam-no o juiz municipal, o escrivão, Manoel
Mauricio Correia de Sá, e o padre Joaquim, todos guardados por uma força
militar sob o commando do alferes Miguel Porfírio de Souza Caldas.
Depois de percorridas as ruas "mais publicas" da
cidade, o fúnebre cortejo parou em frente ao patibulo, erguido no logar onde é
hoje o Mercado do Peixe, na Avenida Rio Branco.
Ainda uma vez, o official de Justiça declamou a sentença
irrevogável ; e o assassino, aterrado e vacillante, chorava — ao lado do padre
que o exhortava compungido — sem energia para galgar os degráos da forca (1).
Deram-lhe um pouco de vinho.
Reanimou-se e, tremulo, os olhos congestos na face livida,
dirigindo-se á multidão que o cercava, presa de uma angustia sem nome :
—Rogo a todos que me vão assistir a agonia que resem uma
Salve Rainha e peçam á Nossa Senhora para me dar uma boa passagem para o outro
mundo. . .
Entregou-se ao carrasco, o preso Francisco Lourenço Cabral.
E quando este, depois de ter justo demoradamente o laço,
deteve-se, aguardando o signal do juiz, ouviram-se, cortando o silencio
d'aquelle grande momento, vozes entrecortadas de soluços, pedindo
misericórdia...
O reu disse ao algoz :
— Espere, camarada.
E segredou a ultima confissão ao sacerdote, que o abençoou,
murmurando phrases da litania dos mortos. Em seguida, foi arremessado ao vácuo
; um tremor convulsivo agitou-lhe os membros destendidos; e o carrasco, diabolicamente,
apressou-lhe a morte, com o auxilio brutal do costume...
Eram nove horas.
O povo, ainda oppresso, dispersou-se aos poucos; os paes
retiraram os filhos, que para ali haviam sido conduzidos afim de assistirem áquelle
exemplo, segundo o uso detestável da época ; e o corpo ficou durante algum
tempo suspenso e abandonado de parentes e amigos, se é que o assassino os tinha
ao morrer.
Não apparecendo quem o levasse, fel-o a justiça, que o
mandou conduzir para a capella do Rozario, onde se acha enterrado.

(1) Alexandre, como, em geral, os indivíduos de indole
perversa, era pusillanime. Tendo de servir de carrasco de Ignacio José Baracho,
acovardou-se no momento da execução e se poz a tremer.
O condemnado, celebre pela sua coragem, disse-lhe com um tom
de feroz ironia :
— O que é isto, Alexandre ? Com certeza você não tremeu
assim quando matou a hamburgueza I
Baracho não consentiu que elle lhe puzesse o laço ao pescoço;
fel-o com as próprias mãos e
precipitou-se elle mesmo no espaço, tendo dito antes ao desgraçado;
- Não consinto que um homem como você me empurre...
Não encontrei o processo de Baracho: devia ser bem curioso.
Narrou-me o facto, assim como alguns pormenores d 'esta chronica,
o velho poeta natalense Lourival Açucena, que, ainda criança, teve de assistir
a tão dramáticos episódios.

5 comentários:

  1. Algum dos posts anteriores já se referiu a esta história do Baracho, Dunga?

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    1. Não, Esso. Ela só aparece nessa nota sobre o enforcamento de Alexandre, ele que foi obrigado a ser o carrasco de Baracho. Vou ver se acho essa estória.

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  4. Será que o final da rua dos Tocos, onde a vítima morava, já era a Deodoro, Dunga? Mais: o Mercado de Peixes era no mesmo local do que incendiou?

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