domingo, 3 de julho de 2011

MODERNIDADE SEM MEMÓRIA

"Minha opinião pessoal não vale de nada."
Demétrio Torres

Muito / O Poti

Edição de domingo, 3 de julho de 2011


Modernidade sem memória

Estudiosos defendem que Natal deveria unir desenvolvimento ao respeito com seu patrimônio arquitetônico

Sérgio Vilar // sergiovilar.rn@dabr.com.br


O diálogo entre o velho e o novo foi marcado por desavenças ao longo da história. Quando a vivacidade do progresso brilha sobre as cores desbotadas da tradição, a sensação é de desenvolvimento, evolução. E na esteira dessas transformações, a identidade cultural construída junto a cada tijolo colocado na edificação se desmorona para ceder lugar a uma nova vida, sem personalidade ou memória. Nas últimas décadas Natal tem destruído sua história. E o obituário da arquitetura moderna da cidade está em vias de registrar mais um "arquiticídio": a demolição do estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado, o Machadão.


Natal segue o exemplo de metrópoles espalhadas pelo mundo Ocidental. Nelas, o caos urbano impera: concentração demográfica, congestionamentos, poluição sonora e visual... Se há peculiaridade na chamada Aldeia de Poti, é a característica de cidade em desenvolvimento. Ou seja: ao contrário das metrópoles onde o "progresso" se instalou sem aviso prévio, ainda há tempo para planejar Natal. Mas a inércia, incompetência ou desapego cultural do poder público tem virado as costas para esse planejamento. É o que apontam alguns dos principais arquitetos da cidade. E um exemplo é o histórico e atual desleixo com seu patrimônio material.


O desafio imposto a Natal é unir o desenvolvimento sustentável ao respeito com seu patrimônio arquitetônico. Este é o mote de artigo escrito pelos professores Maisa Veloso, Natália Miranda Vieira e Marizo Vitor Pereira, intitulado Crônica de uma morte anunciada: Arquitetura moderna em Natal x Copa de 2014. No trabalho, eles frisam: "Preservar o patrimônio arquitetônico não significa congelá-lo, transformá-lo em coisa imutável. Nem tão pouco exercitar 'meia preservação', acarretando prejuízo para a proposta arquitetônica original, em nome de uma pretensa requalificação". Não é o que se tem visto nas últimas décadas.


Os professores - todos eles membros do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFRN e do programa de pós-gradução - comentam que o acervo natalense da arquitetura moderna começa a surgir na década de 1950 influenciado pela "Escola Pernambucana" e de influências externas, a exemplo da "Escola Carioca". "Nesse cenário, destacam-se os arquitetos potiguares Ubirajara Galvão, Daniel Hollanda e Raimundo Gomes, formados pela UFPE; João Maurício Fernandes de Miranda e Moacyr Gomes, formados pela Faculdade Nacional de Arquitetura, então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro". Mas a obra desses arquitetos, em maioria, foi demolida, desfigurada ou está abandonada.


Sociedade sem voz


O Machadão hoje é considerado descartável pelo governo, sem discussão sobre sua importância simbólica e patrimonial. Em seu lugar será construído um complexo multiuso, contendo uma nova arena esportiva. Na versão inicial, estavam incluídos hotéis, teatro, estacionamentos subterrâneos, prédios comerciais, shopping center e os centros administrativos do governo do Estado e da Prefeitura de Natal.


Como afirma a tese dos professores da UFRN, "o caso do Machadão é apenas um exemplo dentre muitas outras mortes que não foram sequer anunciadas, ou apenas comunicadas em breves 'notas de falecimento', em rodapés de um novo texto que está sendo escrito, de uma cidade historicamente ansiosa pelo novo e pela novidade".


E pergunta, após decisão de que não seria possível realizar a adaptação do estádio para a Copa. "Mas, como se chegou a esta decisão? Qual o seu fundamento? Que aspectos foram considerados? Que atores sociais foram consultados para uma tomada de decisão tão séria como esta?".


Arquitetura abandonada


A história é um livro aberto. E no capítulo de Natal, algumas folhas têm sido arrancadas, destruídas. O arquiteto Haroldo Maranhão aponta total desprezo na cidade. "Basta comparar com capitais vizinhas. Mesmo Fortaleza, mais jovem, preserva seu centro histórico. Recife, nem se fala. Aqui, a todo momento arrancamos a lembrança marcada em nosso álbum de família". E cita a má conservação dos prédios tombados ou mesmo os sem legislação que assegurem sua integridade.


"Falta política de preservação. A primeira intervação se deu na Rua Chile, em 1995. Depois voltou o abandono. Em 1999 a prefeitura promoveu concurso para revitalização da praça André de Albuquerque. E veja hoje como está. É preciso inserir na agenda da cidade a questão ambiental e cultural. Extinguir o conflito entre capital financeiro e capital cultural. Progresso é a harmonia entre desenvolvimento econômico, cultural e social", ressaltou.


Para ele, falta incentivo aos proprietários de prédios tombados, já que a edificação se desvaloriza pela proibição de reformas radicais, a exemplo da demolição para construção de espigões. Cita o prédio do antigo Arpege, cujo teto desabou pelo abandono. "A história não é só o que foi feito há séculos. A arquitetura moderna vem sendo destruída ou descaracterizada", alerta.


"Natal tem mania de construir em cima do já feito"


Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Jeanne Nesi disse enfrentar dficuldades para conservar prédios tombados no bairro da Ribeira e Cidade Alta. "Proprietários são responsáveis pela conservação. Muitos estão abandonados e a fiscalização do Iphan não consegue encontrar os donos para um diálogo amistoso. O prédio do Arpege é um exemplo. Partiremos pra ação judicial".


Não é o caso de outras áreas da cidade, a exemplo de Tirol e Petrópolis, repletos de prédios da arquitetura moderna, sem tombamento e passíveis de demolição. "Em São Paulo também é assim: casarões históricos dão lugar a espigões. Na Europa antiga se preserva; há sentimento preservacionista, iniciado com a Revolução Francesa, quando o povo tomou os monumentos do clero e preservaram. Surgiu ali o tombamento".


Em relação ao Machadão, o Iphan nada pode fazer a respeito. "Os estádios Machadão e Machadinho estão fora da área de tombamento do Iphan, assim como a maioria dos prédios de arquitetura moderna da cidade", comentou Jeanne Nesi, nora de Humberto Nesi, nome do chamado Machadinho. "É um desrespeito. Lamento essas demolições, sem respeito ao patrimônio e a seus criadores, sem qualquer compensação".


Jeanne Nesi ressalta que fala como cidadã e arquiteta. "É uma cultura nossa. Natal tem mania de construir sobre o já feito. O projeto em Recife é de um estádio novo, belíssimo, mais afastado da cidade e sem mexer nos três estádios tradicionais. Não falta espaço nos arredores de Natal. O entorno do novo aeroporto de São Gonçalo do Amarante seria uma ideia", sugere.


AMARGURA


Precursor da arquitetura moderna em Natal, Moacyr Gomes vive hoje amargurado aos 84 anos. Desistiu das entrevistas à imprensa que só o procurou após sacramentada a demolição da sua "menina dos olhos" e lhe renegou atenção quando alertou para o "arquiticídio" da ação quando o assunto começava a ser discutido, há três anos. "O Brasil está sendo assaltado pela Fifa, como foi feito na África do Sul. E a Assembleia Legislativa ainda dará título de cidadão potiguar ao gangster Ricardo Teixeira (presidente da CBF). Não vi legado em 16 copas que aconteceram. Mas meu esforço é inútil. Não vou mais me expor ao ridículo para riso alheio".


Para Moacyr Gomes, o Machadão é consequência de uma série de equívocos vividos há 20 anos na cidade. O "massacre" provocado pelo mercado imobiliário tem como carro-chefe espigões construídos sem planejamento urbano ou respeito aos bens culturais. "Hoje somos uma cidade ingovernável. Quero viver bastante para ver esse milagre de mobilidade urbana. Hoje às 9 horas não se passa pelas principais avenidas, todas congestionadas. Natal será uma cidade infernal como São Paulo, Recife, porque a cidade não se planejou. Não tem mais jeito. Infelizmente o natalense não tem bairrismo, não ama sua cidade".


A solução apontada pelo arquiteto para evitar a verticalização exacerbada encontrada em cidades do mundo com mais de 400 mil habitantes seria dotar as cidades vizinhas de melhor estrutura para atrair o cidadão e evitar a concentração urbana em pequenos espaços e bairros antigos. "Foi o que aconteceu em Petrópolis e Tirol. Já chegou em Lagoa Nova e está indo para Neópolis". E aponta: "No meu tempo de menino, Natal tinha 25 a 30 mil pessoas. Hoje está perto de 1 milhão. Temos prédios enormes, com densidade demográfica exagerada, sem qualidade de vida".


Entrevista: Demétrio Torres

Demétrio Torres preferiu omitir opiniões e encerrar o assunto quando o tema da importância do patrimônio cultural para a cidade foi abordado. Ainda assim, confessou o motivo para a demolição do Machadão: aspectos técnicos, sem consulta à sociedade ou consideração pelo patrimônio cultural àquele que já foi considerado o "poema de concreto" da cidade. O diretor do Departamento de Estradas e Rodagens (DER) acumula também a função de secretário da Copa no novo governo estadual, desde 1º de janeiro. Também participou da atual gestão municipal como secretário de Obras e Viação. Tem longo currículo na área da engenharia e na administração pública.

Quais aspectos foram considerados para decidir-se pela demolição do Machadão?

Todos os aspectos foram técnicos: a localização (região central da cidade onde passam 70% das linhas de transporte), a fácil acesso ao aeroporto, aos hoteis, à rede hospitalar de alta complexidade.

A cidade perde parte de sua memória cultural com essa decisão?

Como é uma obra ultrapassada se comparada aos grandes estádios do mundo, penso que o Machadão já cumpriu seu papel.

Quais atores sociais foram consultados para esta decisão?

Olha, a opção foi feita no ano passado. Assumimos o governo e já não cabia mais esse tipo de discussão (a reportagem não conseguiu contato com o primeiro secretário da Copa, Fernando Fernandes).

Qual seria a opinião do senhor se ainda coubesse?

Minha opinião pessoal não vale de nada. A obra já está em andamento.

Se outro patrimônio da arquitetura moderna, a exemplo do prédio do DER, estivesse passível de demolição, o senhor seria a favor?

Como é, homem? Você não disse que o assunto seria o Machadão?

Disse que o tema seria a arquitetura moderna de Natal e o Machadão seria um exemplo.

Bom, pra mim o assunto está encerrado.


Saiba mais

Arquitetura moderna surgida na década de 50 em Natal

Faculdade de Odontologia
Terminal Rodoviário Presidente Kennedy
Clube da Assem
Edifício Sede do Tribunal Regional Eleitoral
Sede do América Futebol Clube
Edifício do INSS/Ribeira

Arquitetura moderna surgida na década de 70 em Natal

Hospital Geral e Pronto Socorro (atual Walfredo Gurgel)
Estádio Machadão
Edifício da Cosern
Capela do Campus Central da UFRN
Catedral Metropolitana de Natal
AABB


Patrimônio arquitetônico moderno demolido

Sede do ABC Futebol Clube
Hotel Tirol


Patrimônio abandonado ou desfigurado

Hotel Reis Magos
Edifício Sede do Saneamento
Cine Nordeste
Cinema Rio Grande

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