Festa macabra
ARTIGO PUBLICADO NO ESTADÃO DESTA QUINTA-FEIRA
Demétrio Magnoli e Adriano Lucchesi
“Há uma percepção crescente de que a aritmética da Copa do Mundo é um tanto instável”, escreveu o Times de Johannesburgo um mês depois do triunfo da Espanha nos campos sul-africanos. “Temos estádios em excesso para nosso próprio uso. Talvez devêssemos exportar estádios para o Brasil, que fará sua Copa do Mundo?”. A constatação estava certa; a sugestão, errada. O Brasil, país do futebol, terá o mesmo problema que a África do Sul, país do rúgbi. Aqui, como lá, a festa macabra da Fifa é um sorvedouro implacável de recursos públicos.
Mafiosos usam a linguagem da máfia. Confrontado com evidências de corrupção na organização que dirige, Sepp Blatter avisou que tais “dificuldades” seriam solucionadas “dentro de nossa família”. As rendas de radiodifusão e marketing da Fifa ultrapassaram os US$ 4 bilhões no ciclo quadrienal encerrado com a Copa da África do Sul. O navio pirata já se moveu para o Brasil, onde a Fifa articula com seus sócios a rapina seguinte.
O brasileiro João Havelange planejou a globalização do futebol, expandindo a Copa para 24 seleções, em 1982, e 32, em 1998. Blatter concluiu a transformação, rompendo a regra de rodízio de sedes entre Europa e América. Como constatou a Sports Industry Magazine, sob um processo milionário de licitação do direito de hospedagem, as ofertas nacionais assumiram “a forma de promessas de mais e mais pródigos novos estádios para os jogos e novos hotéis luxuosos para uso dos dirigentes da Fifa e de fãs endinheirados”. A Copa é um roubo: as despesas são pagas com dinheiro público, de modo que a licitação “constitui, de fato, um esquema de extração de renda concebido para separar os contribuintes de seus tributos”.
O saque decorre da conivência de governos em busca de prestígio e de negociantes em busca de oportunidades. Na Europa a rapinagem é circunscrita por uma cultura política menos permeável à corrupção e pela existência prévia de modernas infraestruturas hoteleiras, esportivas e de transportes. Por isso a Fifa seleciona seus próximos alvos segundo critérios oportunistas de vulnerabilidade. Encaixam-se no perfil África do Sul e Brasil, países emergentes que ambicionam desfilar no círculo central do mundo, assim como a semiautoritária Rússia, sede de 2018, e a monarquia absoluta do Qatar, que bateu a Grã-Bretanha na disputa por 2022.
Antes das Copas, consultores associados às redes mafiosas produzem radiosas profecias sobre os efeitos econômicos do evento. Depois, quando emergem os resultados efetivos, eles já estão entregues à fabricação de ilusões no porto seguinte. A África do Sul gastou US$ 4,9 bilhões em estádios e infraestruturas, que gerariam rendas imediatas de US$ 930 milhões derivadas do afluxo de 450 mil turistas, mas só arrecadou US$ 527 milhões dos 309 mil turistas que de fato entraram no país.
O verdadeiro legado positivo da Copa de 2010 foi a mudança de paradigma no sistema de transporte público urbano, pela introdução de ônibus, em corredores dedicados, e do Gautrain, trem rápido de conexão com o aeroporto de Johannesburgo. Os ônibus enfrentavam selvagem resistência dos sindicatos de operadores de peruas, superada pelo imperativo urgente do evento esportivo. O Gautrain serve exclusivamente à classe média, com meios para adquirir bilhetes cujos preços excluem a população pobre. Mas o argumento de que sem uma Copa, não se realizariam obras necessárias de mobilidade urbana equivale a uma confissão de incompetência da elite dirigente.
Eventos esportivos globais tendem a gerar ruínas urbanas, mesmo em países mais inclinados a zelar pelo interesse público. Japoneses e sul-coreanos ainda subsidiam a manutenção das arenas da Copa de 2002. As dívidas contraídas para as obras da Olimpíada de Atenas e da Eurocopa de 2004 aceleraram a marcha rumo à falência da Grécia e de Portugal. A África do Sul incinerou US$ 2 bilhões na construção e reforma das dez arenas da Copa. Todas, com exceção do Soccer City, de Johannesburgo, usado para jogos de rúgbi e shows, figuram hoje como monumentos inúteis, conservados pela injeção de dinheiro público. A Cidade do Cabo paga US$ 4,5 milhões ao ano pela manutenção da arena de Green Point, erguida ao custo fabuloso de US$ 650 milhões e usada apenas 12 vezes depois da Copa. Lá se desenrola um melancólico debate sobre a alternativa de demolição do icônico estádio, emoldurado pela magnífica Table Mountain.
O Brasil decidiu ultrapassar a África do Sul. Aqui, serão 12 arenas, a um custo convenientemente incerto, mas bastante superior aos dispêndios sul-africanos. As futuras ruínas já drenam vultosos recursos públicos, mal escondidos sob as rubricas de empréstimos do BNDES e subsídios estaduais e municipais. O governo paulista prometeu não queimar o dinheiro do povo na festa macabra da Fifa, mas o alcaide Gilberto Kassab assinou um cheque público de US$ 265 milhões destinado ao estádio do Corinthians. São 16 centros educacionais, para 80 mil estudantes, sacrificados por antecipação no altar de oferendas às máfias da Copa. O gesto de desprezo pelas necessidades verdadeiras dos contribuintes reproduz iniciativas semelhantes adotadas, Brasil afora, por governos estaduais e municipais.
Segundo a lógica perversa do neopatriotismo, a Copa é um artigo de valor só mensurável sob o prisma da restauração do “orgulho nacional”. De fato, porém, a condição prévia para a Copa é a cessão temporária da soberania nacional à Fifa, que assume funções de governo interventor por meio do seu Comitê Local. O poder substituto, nomeado por Blatter, já obteve o compromisso federal de virtual abolição da Lei de Licitações e pressiona as autoridades locais pela revisão das regras de concorrência pública. Malemolentes, ao som dos acordes de um verde-amarelismo reminiscente da ditadura militar, cedemos os bens comuns à avidez dos piratas.
Por Edmar Lyra Filho
para o Acerto de Contas
http://acertodecontas.blog.br/artigos/copa-do-mundo-de-2014-quem-pagar-a-fatura/
O anúncio do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 foi o início de uma expectativa de que teríamos a grande oportunidade de reestruturar questões como transporte público, hospedagem, aeroportos, etc. Além disso, uma grande perspectiva de reformar estádios lendários como o Morumbi, o Maracanã, a Fonte Nova, o Mineirão, o Arruda, entre outros.
Infelizmente as expectativas foram se transformando em apreensão e principalmente quando houve o veto de estádios como o Arruda em Pernambuco e o Morumbi em São Paulo. Dois verdadeiros templos do futebol que ficaram de fora da Copa de 2014.
Em São Paulo, onde estava sendo cogitada a abertura da Copa do Mundo, o estádio do Corinthians em Itaquera aumentou de R$ 650 milhões para R$ 1 bilhão e há o impasse sobre quem pagará a diferença de R$ 350 milhões a empreiteira que irá construir o estádio.
No Rio de Janeiro a reforma do Maracanã, que estava orçada em R$ 600 milhões, já está na casa de R$ 1 bilhão também.
Em Pernambuco o projeto Cidade da Copa é um descalabro. Também na casa de R$ 1 bilhão, o estádio que será construído em São Lourenço da Mata, no meio do nada, vale salientar, não está em condições viáveis para o que, em tese, deveria estar.
O então Presidente Lula e Ricardo Teixeira, presidente da CBF, disseram que a construção de estádios seria realizada pela iniciativa privada. Uma mentira deslavada. Todos os estádios estão sendo financiados pelo BNDES, ou seja, dinheiro público investido em estádio.
Os aeroportos estão em uma situação vergonhosa e dificilmente chegarão em 2014 em condições de atender os turistas que visitarão o Brasil. Sem dúvidas teremos um apagão aéreo, com maior ênfase na Copa, porque já vivemos em épocas de elevado fluxo de passageiros. A saída que o governo achou foi privatizar os aeroportos, mas conceder à iniciativa privada nessa altura do campeonato não irá resolver os problemas para 2014.
A rede hoteleira não tem o apoio necessário, em várias cidades não estamos observando construção de novos hoteis para receber o elevado fluxo de pessoas que virão ao país. Recife, por exemplo, já opera quase que diariamente em 100% da sua capacidade. Imagina na Copa do Mundo? E são poucos os hoteis que serão construídos para 2014.
Sob o ponto de vista do trânsito, devido ao elevado fluxo de veículos, várias capitais estão totalmente estranguladas e o turista que vier ao Brasil vai enfrentar engarrafamentos quilométricos. Além do mais não terá metrô de qualidade e muito menos ônibus para poder passear pelas cidades.
A segurança pública também é um fator preocupante, as drogas estão tomando uma proporção alarmante e consequentemente contribuindo diretamente para o aumento da violência no Brasil.
Não houve, nem por parte do governo e muito menos da iniciativa privada, projetos eficientes para evitar esses problemas citados sequer fossem lembrados hoje, a dois anos da Copa das Confederações e a três da Copa do Mundo. Não temos sequer um estádio em fase de conclusão, a maioria está em terraplanagem.
Agora o governo quer ‘flexibilizar’ a Lei para que as obras sejam executadas a ponto de ficarem prontas para a Copa do Mundo. Fazer isso é institucionalizar a corrupção para diminuir a incompetência do governo em realizar um evento desse porte.
O Pan de 2007 no Rio de Janeiro estava orçado em R$ 500 milhões, infelizmente os números finais chegaram a inaceitáveis R$ 5 bilhões. E quase tudo o que foi feito no Rio de Janeiro para o evento virou elefante branco. Em miúdos, foi dinheiro jogado no lixo.
Pelo andar da carruagem, até a finalização da Copa de 2014, para que o Brasil não passe vergonha, os brasileiros pagarão caro com o aumento que deverá seguir a proporção dos valores do Pan, ou seja, dez vezes mais do que foi orçado inicialmente.
O Brasil pode até não faturar o hexa em 2014, mas com certeza muita gente vai superfaturar.
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